Um Cinema de Escavação
Edição 2: Problemas da Imagem, Imagens Arqueológicas e Poéticas, Viagem à Itália e La Chimera
Discorrer sobre a imagem na contemporaneidade é sempre uma faca de dois-gumes: enquanto se pensa sobre ela, a mesma se transforma diante dos nossos olhos. Se a discussão, há alguns meses, era o poderio da inteligência artificial na arte, logo já lidamos com longas-metragens que se utilizam da tecnologia para a criação de algumas de suas imagens – como foi o caso de Late Night with the Devil (2024), de Cameron e Colin Cairnes. Esse imediatismo visual não apenas prejudica os trabalhadores da área, que veem seus trabalhos serem precarizados, como também refletem a própria natureza geradora dessas imagens. Em outros termos, cada vez mais se observa uma produção mecanizada e pouco pensada, uma reflexão que arranha apenas a superfície, nunca caminhando em direção a uma maturidade tanto do pensamento quanto da própria feitura da imagem.
O que parece importar a muitos dos cineastas – sejam eles hollywoodianos, dentro ou fora dos sistemas de estúdio, ou outros produtores de imagens ao redor do mundo – é o primeiro impacto deixado pela construção imagética. Antes olhos impressionados com a grandiosidade da cena que com o que ela tem de fato a transmitir narrativa e emocionalmente. Não é muito diferente do que podemos encontrar nesse breve trecho de O Pintassilgo, de Donna Tartt: "A forma com que ela arruma, uma mesa sozinha com luz em cima, e todas aquelas coisas dispostas de modo a ficar claro que não é para tocar [...]1". Existe, então, uma habilidade de construir uma encenação que, assim como a sala da Sra. Barbour no livro, é muito mais uma projeção arquitetônica para vender que para, de fato, servir à narrativa. As casas, cada vez maiores, estão tomadas por tons de branco e cinza; a fotografia carrega as tintas no cinzento para uma ideia de realismo que chapa a imagem e tira dela sua profundidade.
E a ideia de imagens profundas – ou, como as chamarei a partir de agora, imagens arqueológicas – pode ser conceituada como aquelas que funcionam como núcleos densos de significado, encapsulando de forma intensa e concentrada o âmago da narrativa e que, quando escavadas e finalmente emergidas, são preenchidas de clareza e revelação. Isso não significa – e é importante destacar – que as elucubrações visuais necessitam de uma construção que encontre justificações semióticas, mas sim que, ao se pensar uma imagem, seja considerado como ela se encaixa dentro do espectro expressivo da história a ser contada. O ato de escavar a imagem, então, é uma forma de acessar os sentimentos inerentes àquela narrativa e àqueles personagens. Um determinado momento narrativo precisa ser mais que belo para que haja escavação; ele precisa encontrar uma razão sentimental, um encontro que poucos diretores foram felizes de conseguir.
Um deles, talvez um dos maiores, foi Roberto Rossellini, em um dos seus projetos mais importantes: Viagem à Itália (1954), protagonizado por Ingrid Bergman e George Sanders. Como esclarece Laura Mulvey, o cineasta se utilizou de uma cidade como Pompeia, marcada pelas ruínas, para "[...] estender ao cinema as fronteiras borradas entre o material e o espiritual, a realidade e a magia, e entre a vida e a morte2". Uma cena é definidora desse conceito e, consequentemente, da ideia de imagens arqueológicas. Katherine (Bergman), ao lado de seu marido Alexander (Sanders), vai a um sítio arqueológico de Pompeia, onde está havendo escavações. Ela observa, atenciosamente, os vestígios de um casal engolido pela lava do Vesúvio sendo preenchidos pelo gesso. A antítese vida-morte ganha uma forma quase fantasmagórica, inundando o presente com o passado. Este processo de revelação é simultaneamente literal e metafórico, pois ao "escavar" esses corpos também se desenterram sentimentos reprimidos. O choro de Katherine diante dos corpos de mãos dadas reflete seu próprio desespero, assim como seu desejo por intimidade, aspecto ausente em seu casamento com Alexander.
Portanto, a ideia de escavar uma imagem em Viagem à Itália vai além da simples recuperação de vestígios históricos. Ela se torna um meio de explorar camadas ocultas de emoção e significado. Rossellini utiliza as ruínas de Pompeia como um espelho da condição interna de seus personagens, mostrando que o ato de escavar é também uma jornada introspectiva, na qual cada descoberta do passado ilumina aspectos do presente. Tal característica, rara no cinema atual, justamente por seu desejo imediatista de choque imagético, pode ser encontrada na mais recente incursão cinematográfica de Alice Rohrwacher, La Chimera (2023). A cineasta, com extrema sensibilidade, parece ter entendido, assim como Tarkovsky aponta em seu Esculpir o Tempo, que o mundo não pode ser compreendido através da câmera, mas a partir da construção da imagem poética ser capaz de exprimir essa totalidade3. A história do ladrão de tumbas que está em busca do seu amor é já é forte o suficiente apenas pela ideia, mas a forma dada pela cineasta indica caminhos nos quais a imagem é também um dos artefatos escavados.
Basta observarmos algo simples que a cineasta faz quando o protagonista Arthur (Josh O'Connor) pressente que há vestígios da civilização etrusca em algum terreno. Sutilmente, ela permite que a câmera vire de cabeça para baixo, colocando esse homem também desta forma, como se a vida encontrasse a morte por alguns instantes. Sua jornada em busca de Beniamina é muito semelhante à jornada de Orfeu em busca de Eurídice no mundo dos mortos – algo que pode ser inferido até pela trilha sonora escolhida pela cineasta: L'Orfeu, de Monteverdi. Arthur, assim como Katherine, liga-se profundamente aos seus sentimentos quando se depara com uma escavação tanto da terra quanto de si e, consequentemente, da imagem. A poesia de Rohrwacher está em permitir que a reflexão em cima da matéria fílmica se dê pelos sentimentos que estão impregnados ali. Ao preocupar-se com a estética da imagem, ela não deixa de considerar o que existe de mais expressivo dentro de sua essência. E o ápice dessa relação entre escavação-sentimento-poesia está presente no momento em que Arthur vislumbra uma estátua etrusca em uma das tumbas que invade com sua turma.
Depois que o tempo deixa sua marca nas pinturas da parede, Arthur desce e depara-se com aquele artefato de beleza impressionante. Seus olhos, de encantamento e medo, se assemelham aos de Ingrid Bergman quando se depara com a estátua do jogador de discos em Viagem à Itália. Mas o que a imagem proposta pela cineasta nos faz perceber é que aquele rosto feminino, daquela deusa, é quase como um encontro do protagonista com sua amada. A lividez, a beleza, o toque romântico dessa troca de olhares imóveis fazem com que o que há de mais belo na fábula se sobressaia: a magia de um momento pelo que ele tem de mais significativo. Todo o sentimento posto embaixo dos corpos e da terra emerge como uma revelação quase divina. Arthur é um homem ligado ao passado e às imagens que ele traz, e seu futuro só pode ser encontrar-se com essas quimeras afetivas. O que Alice Rohrwacher produz é poesia imagética, a possibilidade de observar uma imagem por mais tempo, escavá-la, encontrar seu coração e o ver pulsando. É raro, é poético, é belo. Por um cinema de imagens arqueológicas.
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TARTT, Donna. O pintassilgo. Tradução de Sara Grünhagen. São Paulo: Companhia das Letras, 2014. p. 155.
Do original: "[...] to extend into cinema the blurred boundaries between the material and the spiritual, reality and magic, and between life and death." In: MULVEY, Laura. Death 24x a second: stillness and the moving image. London, Reaktion Books Ltd, 2006. p. 104.
TARKOVSKY, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 2019. p. 123.
a menção ao pintassilgo 🗣️🗣️ adorei o texto
lindíssimo texto para um lindíssimo filme